sexta-feira, 2 de julho de 2010

O rap popular brasileiro do século XXI

O rap popular brasileiro do século XXI



Por Pedro Alexandre Sanches [Quinta-Feira, 10 de Junho de 2010 às 15:00hs]






Leandro Roque de Oliveira tinha três anos de idade quando, 21 anos atrás, surgiu Pânico na Zona Sul, o primeiro rap lançado comercialmente pelo grupo Racionais MC’s, 21. Atualmente mais conhecido pelo codinome Emicida, “matador de MC’s”, Leandro é representante altivo de uma geração que conhece e segue a invenção de artistas pioneiros como Racionais ou Thaíde & DJ Hum praticamente desde que nasceu.










Hoje maior de idade, a cultura hip-hop brasileira é um organismo em forte e permanente transformação, por mais que inimigos localizados do outro lado da muralha social ainda prefiram enxergar o movimento como parado ou estagnado. Emicida é prova eloquente de que o hip-hop não para. Conquistou interesse e respeito vencendo embates de improviso, chamados batalhas de MCs (daí seu apelido algo agressivo) e assemelhados à cultura freestyle do hip-hop norte-americano, mas muito próximos também da tradição nordestina dos duelos de repente, coco, embolada etc. Emicida canta rap com banda, insere versos de Dorival Caymmi em composições próprias e faz barulho totalmente à margem da velha indústria fonográfica.










O distanciamento entre as gravadoras e a música realmente popular do Brasil não chega a ser novidade e, por outro lado, nem mesmo Emicida prescinde da badalação pela MTV ou da “grande” imprensa para angariar notoriedade. Mas seu modo de se relacionar com o império ruinoso das gravadoras multinacionais ilustra e atualiza exemplarmente essas duas décadas em que o rap nacional tem construído um mercado discográfico próprio, original, independente e em larga medida manufatureiro.










A indústria tradicional, enquanto existia como fonte de poder, jamais conseguiu se entender bem com esse movimento underground irradiado principalmente a partir das favelas e periferias paulistas. Os Racionais chegaram a namorar a Sony Music, mas o casamento nunca se consumou. A mesma gravadora liderou a tentativa de trazer o hip-hop ao mainstream, via carioca por intermédio do pasteurizado Gabriel o Pensador e, principalmente, do Planet Hemp e de Marcelo D2. O atuante MV Bill chegou a se associar à Globo na divulgação do importantíssimo trabalho Falcão (em documentário, disco e livro), mas está de volta ao esquema “às próprias custas S/A” em seu novo disco, Causa e Efeito. Quanto à turma carrancuda de São Paulo, nunca houve negócio ou, se houve (como no caso do empenho da gravadora Trama pelo hip-hop), os resultados não chegaram a ser lucrativos.










O jovem Emicida, por sinal, tem histórias emblemáticas para contar sobre o assédio da “grande” indústria. “Nunca tive o hábito de sair entregando fita demo. As gravadoras não sabem trabalhar com rap. Fui procurado por duas grandonas, mas pra mim não rolava”, conta. “Os caras me chegam com contrato de cinco anos. Eu digo: se vai ser essas mil maravilhas que você está falando, vamos fechar um contrato de seis meses então. Aí os caras não querem, eles querem contratos de cinco discos, três DVDs, 40% de tudo que eu ganhar. Fora que tem umas cláusulas tenebrosas sobre meus ganhos não musicais – se eu for fazer uma propaganda, tenho que dar 40% pra gravadora. Eu passaria toda autonomia para os caras responderem por mim.”










Ele descreve a impressão geral deixada pelos marqueteiros das gravadoras: “Acho feia a maneira como tentam me prender pela ganância. Prometem mundos e fundos, dizem que meu cachê vai subir para R$ 20 mil ou R$ 30 mil. Eu tenho paciência, não preciso desesperar agora e dar um passo maior que a minha perna. Há cinco anos eu cantava para 300 pessoas, hoje canto pra 2 mil. Querer pular no meu barquinho e fazer ele afundar porque tá de olho grande no barco dos outros é foda, meu”.










Por essas e outras, Emicida não gravou até hoje um disco, digamos, oficial. Um dos modos que usa para se divulgar é um CD manufaturado (“mixtape”, como chama) com 25 faixas, batizado Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe... Feita à mão com papelão e carimbo e comercializada em seus shows por R$ 5, a mixtape vendeu 11 mil exemplares desde o lançamento, há cerca de um ano.










“Tenho duas lojas que vendem meu CD nas Grandes Galerias (ponto tradicional com várias lojas de rap, no centro de São Paulo), e o resto da minha distribuição fui eu que inventei. É de mão em mão, por e-mail, em lugares aonde as pessoas realmente vão, porque em loja de CD não vão mais. Num fim-de-semana, em três shows, vendi 500 CDs”, narra. Conforme a demanda, ele vai prensando mais cópias, na casa de sua mãe, na zona norte de São Paulo. “É igualzinho um processo de trabalho escolar, sabe? Tem que pegar cartolina, desenhar, recortar o papel crepom. Com dez quilos de papel, dá pra fazer 3.500 cópias. Antes eu comprava CD-R na Santa Efigênia (região central de São Paulo), só que tem CD-R falsificado, sabia disso? Descobri quando tive que comprar em grande escala, mil cópias de uma vez. Às vezes alguém me manda e-mail dizendo que comprou CD e não veio gravado. Vai saber quanta gente comprou e não mandou e-mail?”










Emicida descreve como solucionou o problema: “Liguei direto na empresa que fabrica, mandei os caras virem entregar 10 mil CDs na minha casa. Eles só trabalhavam com empresa, a gente teve que fazer o corre de ter CNPJ. Aproveitamos que o financeiro estava bom no fim de ano, compramos duas impressoras também. Mas a gente ainda acredita bastante no carimbo, até pela velocidade de carimbar os CDs.” Camisetas do Emicida são comercializadas de modo análogo, a R$ 30 cada. Pai de uma filha nascida há poucos meses, Emicida fundou um selo próprio batizado Laboratório Fantasma, e hoje reinveste o dinheiro ganho com shows e CDs na construção de seu próprio estúdio.










Inventando a própria mídia Não é só seu próprio sistema fonográfico que o rap tem inventado nestes anos incríveis de faça-você-mesmo. Se a relação entre o movimento e a indústria da informação é de mútua desconfiança (e, não raro, de desinteresse recíproco), o hip-hop brasileiro tem sabido criar, também, seu próprio jornalismo, amplamente autônomo em relação à mídia tradicional. Um dos veículos de comunicação mais importantes desse gênero musical no Brasil é o Portal Rap Nacional (http://www.rapnacional.com.br), que atualmente tem uma média de 30 mil visitas únicas diárias, e já disponibilizou músicas com 100 mil downloads apenas na semana de lançamento.










O site foi criado há nove anos por Willian Domingues, mais conhecido como Mandrake, que relata etapas da construção: “Quando conheci a internet, sentia falta de cobertura de eventos e grupos que a favela ouvia. Notícia de grupos que já estavam na grande mídia sempre teve, mas novidades, fotos de eventos e músicas pra baixar de grupos que realmente representam a favela, era difícil de encontrar, quase impossível”.










Nascido em Osasco (SP) há 27 anos, Mandrake rememora os primeiros tempos de militante do rap. “Não vou mentir, já pulei muito muro de evento para conseguir entrar porque não tinha dinheiro. Conta telefônica com internet discada vinha um absurdo, então eu só atualizava o site de madrugada, com muita paciência. Trampava o dia inteiro pra, com meu salário, pagar hospedagem do site e contas vinculadas”, relembra. “Eu cobria eventos de todo o Brasil com uma câmera digital simples na mão, sem grana no bolso. Estava disposto a fazer grandes coberturas em troca de condução, hospedagem e alimentação. O moleque aqui foi crescendo, e quando vi estava bem envolvido e com várias amizades importantes. Lembro da minha primeira viagem de avião, muita emoção e querendo não demonstrar medo. Fui pra Porto Alegre no festival Trocando Ideia, junto com Mano Brown, Ice Blue (dos Racionais) e Preto Ghoez (do grupo Clã Nordestino), que foi quem me envolveu no esquema. Por ironia do destino, hoje resido na mesma cidade onde morreu meu amigo Preto Ghoez.”










Prova loquaz da descentralização que dá asas à música brasileira dos anos 2000, Mandrake comanda o portal a partir de Itajaí (SC), para onde se mudou para acompanhar a jornalista Elaine Mafra, que era colaboradora do site e hoje é sua esposa. Ele se descreve como um legítimo faz-tudo nos bastidores do hip-hop. “Desenvolvia trabalhos multimídia para grupos de rap e empresários do meio. Assinei a criação da arte gráfica de álbuns de alguns grupos, websites, flyers, cartazes, fotos. Até filmagem e edição de videoclipe de rap eu fiz.” Em Itajaí, ele e Elaine abriram uma empresa de comunicações e artes gráficas, e Mandrake é também chefe de diagramação e arte do Diário do Litoral.










Hoje, o portal tem duas repórteres em São Paulo e colaboradores espalhados pelo Brasil. “Cada colaborador tem uma senha e posta as notícias de onde quer que esteja”, explica Elaine, 28 anos, que é a jornalista responsável pelo portal. “Temos repórteres voluntários pelos quatro cantos do país. Trabalhamos com sugestões de pauta vindas dos próprios internautas.” Recentemente o Rap Nacional noticiou em primeira mão a morte precoce, por infecção hospitalar, da rapper Dina Di, de resto, largamente ignorada pelos veículos da “grande” mídia.










A chegada das mulheres Outro traço distintivo deste início de século no rap nacional é a chegada marcante das mulheres a um meio antes restrito aos homens e até hoje criticado pelo tratamento dado ao sexo feminino no passado. De fato, as primeiras letras não raro vinham com alto teor misógino – mas só persiste nessa crítica (assim como no ataque à violência presente nos versos de rap) quem não acompanha a contínua evolução e transformação do gênero.










Desde o filme Antônia (2006), dirigido por Tata Amaral, e em especial de 2009 para cá, o hip-hop tem recebido a adesão de uma leva ainda reduzida, mas bastante consistente, de rappers mulheres. Com musicalidade em geral mais leve e solta que a de seus equivalentes masculinos, saíram nos últimos meses discos (e/ou mixtapes) de Flora Matos, Nathy MC e Lurdez da Luz.










Integrante do grupo Mamelo Sound System, essa última encerra seu disco solo com Fim da Egotrip, em que sampleia o tema tropicalista Meu Nome É Gal, escrito para Gal Costa por Roberto e Erasmo Carlos, em 1969. Se o texto antigo dizia “Meu nome é Gal e desejo me corresponder com um rapaz que seja o tal” antes de se pôr a citar nomes de homens que a narradora admirava, Fim da Egotrip retruca que “meu nome.../ meu nome é.../ meu nome é o de menos agora/ eu quero é dizer outros nomes/ peço licença a Quelé, Lady Day, a Guerreira, a Pimentinha”, e segue listando admirações, influências e exemplos exclusivamente femininos.










Outra garota no rap de 2010 é Drica Rizzo, que no festival Gerações Hip-Hop, promovido pelo Sesc Pompeia em abril passado, encarou um palco lotado de rapazes diante dos quais cantou versos sacudidos que ainda soam estranhos a ouvidos tanto dos companheiros de palco quanto da plateia acostumada à rigidez do hip-hop: “Deixe eu te levar/ deixe-se levar/ vem dançar/ solte o corpo”. “O rap tem por natureza ser uma música um pouco pesada, até pelos assuntos abordados, como diferenças sociais, preconceitos raciais”, explica Drica. “Do meu ponto de vista, a voz feminina traz suavidade a esse estilo. Apesar de nós ainda não termos uma grande abertura no rap, até mesmo por ainda ser um universo um pouco machista, aos poucos vejo as mulheres roubando a cena.”










As meninas não estão sozinhas no projeto de arejar o rap. Ventos libertários bafejam trabalhos como Das Ruas pro Mundo, lançado no final do ano passado por Afro-X, ex-integrante do grupo 509-E, que se formou dentro da Casa de Detenção do Carandiru nos anos 1990 e lançou trabalhos históricos como Provérbios 13, de 2000. Preocupado com arranjos e melodias, seu disco solo se abre para fusões e encontros com outros gêneros musicais e artistas, como o funk-soul brasileiro de Carlos Dafé e Sandra de Sá e o rock pesado do CPM22.










Das Ruas pro Mundo demarca a divergência musical e ideológica entre Afro-X, já em liberdade, e seu ex-companheiro no 509-E, Dexter, que ainda cumpre pena de 39 anos de prisão. Ambos são protagonistas do extraordinário documentário Entre a Luz e a Sombra, de Luciana Burlamaqui, que teve lançamento comercial modesto no final do ano passado, apesar de ter colhido mais de uma dezena de prêmios em festivais de cinema como os de Guadalajara, Munique, Biarritz e Havana. Luciana acompanhou, por cerca de sete anos, a vida dos dois artistas-presidiários e elaborou a partir daí uma reflexão contundente sobre a difícil construção de identidade por cidadãos marginalizados e punidos perante uma sociedade nunca predisposta a aceitar sua reabilitação.










Enquanto Afro-X busca uma aproximação com o pop em sua reintegração, Dexter conserva a gravidade e a rigidez, como demonstra o álbum Dexter & Convidados ao Vivo, gravado numa de suas saídas supervisionadas da prisão e também lançado no final de 2010. Entre os artistas convidados de um show assistido por uma multidão estão Thaíde, os Racionais Mano Brown e Edy Rock, o bravo rapper brasiliense GOG e a cantora pop-soul Paula Lima. Ao longo de todo o CD, Dexter presta tributo a seu ídolo Jorge Ben Jor, cuja Charles, Anjo 45 ele sampleia ao final, na voz de Caetano Veloso.










Embora distanciados, Dexter e Afro-X coincidem na iniciativa de homenagear e/ou se aproximar de artistas brasileiros de fora do círculo do hip-hop. Essa é outra das marcas cruciais do rap nacional na transição do século XX para o XXI. Embora os Racionais citassem desde o início seu apreço por Ben Jor e Tim Maia, as afinidades do rap com a chamada MPB (tomada em seu sentido mais amplo) estiveram por muitos anos camufladas, como se os rappers devolvessem com desprezo e desinteresse o abandono a que sempre foram relegados pela música brasileira e pelo Brasil.










Esse é um panorama que vem se modificando lenta, mas continuamente, a partir do momento em que se iniciaram os experimentos de mistura entre o rap e o samba, conduzidos por nomes como Rappin’ Hood, em São Paulo, e Marcelo D2, no Rio (esse, por sinal, deve dedicar seu próximo disco na íntegra ao repertório do politizadíssimo sambista Bezerra da Silva). Hoje, são raros os discos de hip-hop que não tentem se comunicar, ainda que timidamente, com a tal MPB.










Um exemplo: em Experimental (2009), o grupo Central Brasileira do Flow constrói Ataque ou Massacre a partir da integração improvável entre o tema de protesto Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, e a toada caipira Estrada da Vida, da dupla Milionário & José Rico. De uns anos para cá, os samples de ícones gringos do funk e do soul passaram a conviver, no rap nacional, com citações de trechos de Paulinho da Viola, Elis Regina, Roberto Carlos, ícones da canção dita “cafona”, Hyldon, Wanderléa, Lenine, Renato Russo e Pato Fu, numa evidência a mais (e talvez ainda em parte unilateral) de que o Brasil resolveu se reconciliar consigo próprio.










Novamente aqui, Emicida surge como exemplo e paradigma desse Brasil que aprende a conviver com sua gigantesca diversidade cultural e sente forte orgulho disso. Órfão de pai, o menino Leandro foi levado pela mãe em dificuldades financeiras ao convívio de religiões supostamente incompatíveis. “A gente colava com frequência na igreja evangélica, sem ser evangélico, mais por causa do rango. A gente colava na macumba também, onde tivesse um espetinho a gente estava rezando”, ele se diverte.










Miscigenado em vários sentidos, o rapaz sempre teve o rap no sangue, mas nem por isso sentiu necessidade de renegar movimentos musicais divergentes. Se há algo que Emicida parece considerar “cafona” é o preconceito contra outros gêneros musicais: “Cresci ouvindo rap, mas também cresci ouvindo pagode. Eu tinha influência direta dos dois lados, tudo mesclou bem na minha cabeça”. Certamente não é por acaso que, ao se apresentar no palco “burguês” do Sesc num festival de encontro de gerações rappers (de Mano Brown a Emicida), esse artista entrou no palco vestido com a camisa verde-amarela do país em que nasceu.

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